quarta-feira, 18 de março de 2009

Rotas de Migração de Gentes

"...porque a ilha da Madeira meu bisavô a povoou, e meu avô a de São Miguel, e meu tio a de São Tomé, e com muito trabalho, e todas do feito que vê..."João de Melo da Câmara, 1532.



Foi o arquipélago madeirense o início da presença portuguesa no Atlântico, e o primeiro e mais proveitoso resultado desta aventura. Vários são os factores que se conjugaram para este protagonismo. A inexistência de população, em consonância com a extrema necessidade de valorização para o avanço das navegações ao longo da costa africana, favoreceram a rápida ocupação e crescimento económico da Madeira. Por isso, a afirmação do arquipélago madeirense, nos primeiros anos dos descobrimentos, foi evidente: porto de escala ou apoio para as precárias embarcações quatrocentistas, que sulcavam o oceano; importante área económica, fornecedora de cereais, vinho e açúcar; modelo económico, social e político para as demais intervenções portuguesas no Atlântico.

A Madeira foi no século XV uma peça primordial no processo de expansão. A ilha, considerada a primeira pedra da gesta descobridora dos portugueses no Atlântico, é o marco referencial mais importante desta acção no século XV. Ela, de inicial área de ocupação, passou a um entreposto imprescindível às viagens ao longo da costa africana e, depois, foi modelo para todo o processo de ocupação atlântica, Por tudo isto a Madeira firmou o seu nome com letras douradas na História da expansão europeia no Atlântico. O Funchal foi, por muito tempo, o principal ancoradouro do Atlântico que abriu as portas do mar oceano e traçou caminho para as terras do Sul. Aí a abundância do cereal e vinho propiciavam ao navegante o abastecimento seguro para a demorada viagem. Por isso o madeirense não foi apenas o cabouqueiro que transformou o rochedo e fez dele uma magnífica horta, também se afirmou como o marinheiro, descobridor e comerciante. Deste modo algumas das principais famílias da Madeira, enriquecidas com a cultura do açúcar, gastaram quase toda a sua fortuna na gesta descobridora, ao serviço do infante D. Henrique, ao longo da costa africana ou, de iniciativa particular, na direcção do Ocidente, correspondendo ao repto lançado pelos textos e lendas medievais. A juntar a tudo isso temos o rápido progresso social, resultado do porvir económico, que condicionou o aparecimento de uma aristocracia terratenente. Esta, imbuída do ideal cavalheiresco e do espírito de aventura, embrenhou-se na defesa das praças marroquinas, na disputa pela posse das Canárias e viagens de exploração e comércio ao longo da costa africana e, até mesmo, para Ocidente.

A valorização da Madeira no contexto da expansão europeia tem sido diversa. A historiografia nacional considera-a um simples episódio de todo o processo e, em face da posição geográfica, hesita no seu enquadramento, sendo levada, por vezes ao esquecimento. A historiografia europeia, ao invés, não duvida em realçar a singularidade do seu processo neste contexto. A Madeira, arquipélago e Ilha, afirma-se no processo da expansão europeia pela singularidade do seu processo. Vários são os factores que o propiciaram, no momento de abertura do mundo atlântico, e que fizeram com que ela fosse, no século XV, uma das peças chave para a afirmação da hegemonia portuguesa no Novo Mundo. O Funchal foi uma encruzilhada de opções e meios que iam ao encontro da Europa em expansão. Além disso ela é considerada a primeira pedra do projecto, que lançou Portugal para os anais da História do oceano que abraça o seu litoral abrupto. A fundamentação de tudo isto está patente no real protagonismo da ilha e das suas gentes. À função de porta-estandarte do Atlântico, a Madeira associou outras, como "farol" Atlântico, o guia orientador e apoio para as delongas incursões oceânicas. Por isso nos séculos que nos antecederam, ela foi um espaço privilegiado de comunicações, tendo a seu favor as vias traçadas no oceano que a circunda e as condições económicas internas, propiciadas pelas culturas da cana sacarina e vinha. Uma e outra condições contribuíram para que o isolamento definido pelo oceano fosse quebrado e se mantivesse um permanente contacto com o velho continente europeu e o Novo Mundo.

A elevada mobilidade social é uma característica da sociedade insular. O fenómeno da ocupação atlântica lançou as bases da sociedade e a emigração ramificou-a e projectou-a além Atlântico. As ilhas foram assim, num primeiro momento, pólos de atracção, passando depois a actuar como áreas centrifugas. A novidade aliada à forma como se processou o povoamento, activaram o primeiro movimento. A desilusão, as escassas e limitadas possibilidades económicas e a cobiça por novas e prometedoras terras, o segundo surto. Primeiro foi a Madeira, depois as ilhas próximas dos Açores e das Canárias e, finalmente, os novos continentes ou ilhas. Desiludido com a ilha o madeirense procurou melhor fortuna nos Açores ou nas Canárias, e depositou, depois, na costa africana as prometedoras esperanças comerciais. Neste grupo incluem-se principalmente os filhos segundos deserdados da terra pelo sistema sucessório. é disso exemplo Rui Gonçalves da Câmara, filho do capitão do donatário no Funchal, que preferiu ser capitão da ilha distante de S. Miguel a manter-se como mais um mero proprietário na Ponta do Sol. Com ele surgiram outros que deram o arranque decisivo ao povoamento desta ilha. Deste modo a Madeira evidencia-se também no século quinze como um centro de divergência de gentes no novo mundo.

A elevada mobilidade do ilhéu levou os monarcas a definirem uma política de restrições no movimento emigratório em favor da fixação do colono à terra, como forma de se evitar o despovoamento das áreas já ocupadas. O apelo das riquezas de fácil resgate africa­no ou da agricultura americana eram para o homem do século XV mais convincentes, tendo a seu favor a disponibilidade dos veleiros que escalavam com assiduidade os portos insulares. A emigração era inevitável.

A Madeira desfrutava no século XV, a exemplo das Canárias, de uma posição privilegiada perante a costa e ilhas africanas, afirmando-se por muito tempo como um importante centro emigratório para os arquipélagos vizinhos ou longínquos continentes. Para isso contribuiu o facto de estar associada ao madeirense uma cultura que foi a principal aposta das arroteias do Atlântico, isto é, a cana sacarina. Os madeirenses aparecem nas Canárias, Açores, S. Tomé e Brasil a dar o seu contributo para que no solo virgem brotem os canaviais, apareçam os canais de rega ou de serviço aos engenhos, a que também foram seus obreiros nos avanços tecnológicos. A crise da produção açucareira madeirense, gerada pela concorrência do açúcar das áreas que os seus habitantes contribuíram para criar, empurrou-nos para destinos distantes. Nesta diáspora atlântica, iniciada na Madeira, é de referenciar o caso da emigração inter insular dos arquipélagos do Mediterrâneo Atlântico. As ilhas, pela proximidade e forma similar de vida, aliadas às necessidades crescentes de contactos comerciais, exerceram também uma forte atracção entre si. Madeirenses, açorianos e canários não ignoravam a condição de insulares e, por isso mesmo, sentiram necessidade do estreitamento destes contactos.

A Madeira, mais uma vez, pela posição charneira entre os Açores e as Canárias e da anterioridade no povoamento, foi, desde meados do século XV, um importante viveiro fornecedor de colonos para estes arquipélagos e elo de ligação entre eles. A ilha funcionou mais como pólo de emigração para as ilhas do que como área receptora de imi­grantes. Se exceptuarmos o caso dos escravos guanches e a inicial vinda de alguns dos conquistadores de Lanzarote, podemos afirmar que o fenómeno é quase nulo, não obstante no século dezasseis os açorianos surgirem com alguma evidência no Funchal. Note-se, ainda, a presença de uma comunidade de açorianos nas ilhas Canárias, principalmente nas ilhas de Gran Canária, Tenerife e Lanzarote, dedicados à cultura dos cereais, vinha, cana sacarina e pastel. Mas açorianos e canarianos, bem posicionados no traçado das rotas oceânicas, voltaram a sua atenção para o promissor novo mundo.

A ROTA DOS DESCOBRIDORES
A Madeira foi terra descoberta, mas também de descobridores. Na verdade, a Madeira, arquipélago e Ilha, afirma-se no processo da expansão europeia pela singularidade da sua intervenção. Vários são os factores que o propiciaram, no momento de abertura do mundo atlântico, e que fizeram com que ela fosse, no século XV, uma das peças chave para a afirmação da hegemonia portuguesa no Novo Mundo. O Funchal foi uma encruzilhada de opções e meios que iam ao encontro da Europa em expansão. além disso ela é considerada a primeira pedra do projecto, que lançou Portugal para os anais da História do oceano que abraça o seu litoral abrupto. A fundamentação de tudo isto está patente no real protagonismo da ilha e das suas gentes.

Á função de porta-estandarte do Atlântico, a Madeira associou outras, como "farol" Atlântico, o guia orientador e apoio para as delongas incursões oceânicas. Por isso nos séculos que nos antecederam, ela foi um espaço privilegiado de comunicações, tendo a seu favor as vias traçadas no oceano que a circunda e as condições económicas internas, propiciadas pelas culturas da cana sacarina e vinha. Ambas as condições contribuíram para que o isolamento definido pelo oceano fosse quebrado e se mantivesse um permanente contacto com o velho continente europeu e o Novo Mundo. Como corolário desta ambiência a Madeira firmou uma posição de relevo nas navegações e descobrimentos no Atlântico. O rápido desenvolvimento da economia de mercado, em uníssono com o empenhamento dos principais povoadores em dar continuidade à gesta de reconhecimento do Atlântico, reforçaram a posição da Ilha e fizeram avolumar os serviços prestados pelos madeirenses. Aqui surgiu uma nova aristocracia dos descobrimentos, cumulada de títulos e benesses pelos serviços prestados no reconhecimento da costa africana, defesa das praças marroquinas, ou nas campanhas brasileiras e Indicas[1].A proximidade da Madeira ao vizinho arquipélago das Canárias, em conjugação com o rápido surto do povoamento e valorização sócio-económica do solo, orientaram as atenções do madeirense para as ilhas. Assim, decorridos apenas vinte e seis anos sob a ocupação, os moradores da Madeira empenharam-se na disputa pela posse das Canárias, ao serviço do infante D. Henrique. Em 1446 João Gonçalves Zarco, foi enviado a Lanzarote, como plenipotenciário para afirmar o contrato de compra da ilha. Acompanham-no as caravelas de Tristão Vaz, capitão do donatário em Machico e de Garcia Homem de Sousa, genro de ZarcoADVANCE \u 3ADVANCE \d 3[2]ADVANCE \d 3. Mais tarde em 1451, o infante enviou nova armada, em que participaram gentes de Lagos, Lisboa e Madeira, sendo de salientar, no último caso, Rui Gonçalves filho do capitão do donatário do Funchal.

Para a aristocracia madeirense o empenhamento nas acções marítimas e bélicas é, ao mesmo tempo, uma forma de homenagem ao senhor (monarca, donatário) e de aquisição de benesses e comendas. Zurara na «Crónica da Guiné» confirma isso, referindo que a participação madeirense ia ao encontro dos princípios e tradições da cavalaria do reino. O que não invalida a sua presença com outros objectivos, como sucede a partir de meados do século XV. Os principais obreiros do reconhecimento e ocupação da Madeira, como criados da casa do infante D. Henrique, foram impelidos para a aventura africana, com participação activa nas viagens henriquinas de 1445 e 1460 e nas aventuras bélicas nas praças africanas do norte, nos séculos XV e XVI. Esta presença de gentes da Madeira continuará por todo o século XV em três frentes: Marrocos, litoral africano além do Bojador e terras ocidentais. Na primeira e última a presença dos madeirenses foi fundamental.

O APELO DO MAR E DO OCIDENTE
A tradição refere que o primeiro homem a lançar-se à aventura do descobrimento das terras ocidentais foi Diogo de Teive, que em 1451 terá saído do Faial à procura da ilha das Sete Cidades, mas que no regresso apenas descobriu as de Flores e Corvo. Seguiram o seu exemplo outros madeirenses que gastaram muito de sua fazenda para abrir o caminho, mais tarde, trilhado por Colombo. A ilha estava em condições de propiciar ao navegador as informações consideradas imprescindíveis para o descobrimento das terras ocidentais. Note-se que este apelo do Ocidente é uma consequência lógica do reconhecimento dos Açores, ocorrido a partir de 1427, todavia as ilhas mais ocidentais (Flores e Corvo) só em 1452 foram pisadas por marinheiros portugueses. A sua entrada no domínio lusíada deu-se por mãos de Pedro Vasquez de la Frontera e Diogo de Teive em 1452, no regresso de uma das viagens para o Ocidente à procura das ilhas míticas.

As ilhas açorianas, por serem as mais ocidentais sob domínio europeu até à viagem de Colombo, foram o paradeiro ideal para os aventureiros interessados em embrenhar-se na gesta descobridora dos mares ocidentais. Desde meados do século XV, madeirenses e açorianos saem, com assídua frequência, à busca de novas terras assegurando, antecipadamente, a posse do que descobrissem por carta régia[3]. É de notar que este interesse dos insulares pela descoberta das terras ocidentais é muito anterior a Colombo e persistiu após 1492. A primeira carta conhecida é de 19 de Fevereiro de 1462, sendo a posse das novas ilhas Lovo e Capraria e outras que iria descobrir, dadas ao João Vogado. Ainda antes de 1492 temos outras concessões a Rui Gonçalves da Câmara(21 de Junho de 1473), Fernão Teles(28 de Janeiro de 1474), Fernão Dulmo e João Afonso do Estreito(24 de Julho de 1486). Após a primeira viagem de Colombo não esmoreceu o interesse dos insulares por tais viagens. A atestá-lo estão as cartas concedidas a Gaspar Corte Real(12 de Maio de 1500), João Martins(27 de Janeiro de 1501) e Miguel Corte Real(15 de Janeiro de 1502).

O Ocidente exerceu sobre os ilhéus, madeirenses e açorianos, um fascínio especial, acalentado, ademais, pelas lendas recuperadas da tradição medieval. Por isso mesmo, desde meados do século XV, eles entusiasmaram-se com a revelação das ilhas ocidentais - Antília, S. Brandão, Brasil. No extenso rol de aventureiros anónimos que deram a vida por esta descoberta, permitam-nos que referencie os madeirenses Diogo de Teive, João Afonso do Estreito, Afonso e Fernão Domingues do Arco. A. Ballesteros[4] identifica este último como o piloto anónimo que em 1484 veio a Lisboa pedir ao rei uma caravela para, segundo Fernando Colombo, "ir a esta tierra que via."

A estas iniciativas isoladas acresce toda uma tradição literária e os dados materiais visíveis nas plagas insulares. A literatura fantástica, a cartografia mítica o aparecimento de destroços de madeira e troncos de árvores nas costas das ilhas açorianas acalentavam a esperança da existência de terras a ocidente. Nas costas das ilhas açorianas do Faial e Graciosa encalhavam alguns pinheiros, enquanto nas Flores davam à costa dois cadáveres com feições diferentes das dos cristãos e dos negros. Tudo isto levantava o fervor dos aventureiros que com assiduidade viam-se perante ilhas que nunca existiram. A "décima ilha", por exemplo, nunca passou de uma miragem.

A curta permanência de Colombo no Porto Santo e, depois, na Madeira possibilitou-lhe um conhecimento das técnicas de navegação usada pelos portugueses e abriu-lhe as portas aos segredos, guardados na memória dos marinheiros, sobre a existência de terra a Ocidente. Bartolomé de Las Casas e Fernando Colombo falam que o mesmo teria recebido das mãos da sogra "escritos e cartas de marear"[5]. Ambos os cronistas fazem do sogro um destacado navegador quatrocentista. Tudo isto não passa de criação para enfatizar a ligação de ambas as famílias. Na verdade Bartolomeu Perestrelo, ao contrario de muitos genoveses ou seus descendentes, não é referenciado nas crónicas portuguesas como navegador[6]. Ele apenas é referenciado como capitão do donatário da ilha do Porto Santo, por carta de doação de um de Novembro de 1446, e na condição de povoador da ilha acompanhou João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz em 1419 . Mesmo assim em sua casa podia ser possível a presença de tais documentos. Mais importantes foram os elementos que lhe terá fornecido o seu cunhado Pedro Correia, capitão da ilha Graciosa (Açores). Daí ele dava conta de outras notícias das terras açoreanas, sem esquecer os estranhos despojos que aportavam com assiduidade às praias da ilha do Porto Santo. Aí, na Madeira e Porto Santo, ouviu histórias e relatos dos aventureiros do mar, teve acesso a provas evidentes da existência de terras ocidentais legadas pelas correntes marítimas nas praias. Um destes vestígios foi a castanha do mar, mais popularmente conhecida como "fava de Colombo". Por tudo isto é legítimo de afirmar que o navegador saiu do arquipélago, em data que desconhecemos, com a firme certeza de que algo de novo poderia encontrar a Ocidente, capaz de justificar o seu empenho e da coroa.

A ilha ficou-lhe no coração e nunca mais a esqueceu no seu afã descobridor. Bastaram alguns anos de convívio com os marinheiros madeirenses, esporádicas viagens ao golfo da Guiné, para ganhar o alento, a sabedoria e os meios técnicos necessários para definir o plano de traçar o caminho de encontro às terras índicas pelo Ocidente: Cipango (=Japão) era o seu objectivo. Durante os cerca de dez anos que permaneceu em Portugal Cristóvão Colombo acompanhou de perto as expedições portuguesas ao longo da costa africana. O fascínio do navegador pelo mar, conquistado no Mediterrâneo como corsário ou comerciante, despertou-lhe o apetite para as navegações atlânticas portuguesas. No momento em que se fixou em Lisboa toda a atenção e azáfama estava orientada para o desbravamento da extensa costa africana além do Bojador, conhecida como costa da Guiné. Nesta época era já conhecida e navegável toda a área costeira até ao Cabo de Santa Catarina, alcançado em 1474, no período do contrato de Fernão Gomes.

Não obstante este espaço ser vedado à navegação de embarcações que não fossem portuguesas, os estrangeiros poderiam faze-lo a bordo e ao serviço de embarcações nacionais. Assim havia sucedido na década de cinquenta com Cadamosto e Usodimare. Tal como o fez o seu patrício Usodimare, Colombo embarcou em caravelas portuguesas que demandavam as costas da Guiné. Facto normal para um experimentado marinheiro genovês, que na praia do Porto Santo ou na Madeira, acompanhava o vai e vem das nossas caravelas. É de salientar que por muito tempo a Madeira foi escala obrigatória das embarcações portuguesas que se dirigiam à costa africana. Tal facto derivou de o Funchal ser o único porto seguro, avançado no Atlântico, dispondo de excedentes de cereais e vinho, necessários à dieta de bordo dos marinheiros. A par disso os madeirenses acalentavam, desde a década de quarenta, a aventura das navegações africanas, tendo-se empenhado nisso as principais famílias da ilha. Por tudo isto é inevitável associar a viagem de Colombo à sua curta estadia nas ilhas da Madeira e Porto Santo, onde contactou com a realidade atlântica, adquiriu as necessárias técnicas para se embrenhar na aventura de busca das terras ocidentais. O retorno do navegador à ilha, em 1498, no decurso da terceira viagem, pode e deve ser entendido como o seu reconhecimento aos madeirenses. Aqui teve oportunidade de relatar, aos que com ele acalentaram a ideia da existência de terras a Ocidente, o que encontrara de novo.

O convívio com as gentes do Porto Santo havia sido prolongado e cordial pois em Junho de 1498, aquando da terceira viagem, não resistiu à tentação de escalar a vila. A sua aproximação foi considerada mau presságio pois os portossantenses pensavam estar perante mais uma armada de corsários. Desfeito o equívoco foi recebido pelos naturais da terra, seguindo depois para a Madeira. A 10 de junho de 1498 a chegada do navegador ao Funchal foi saudada apoteoticamente, como nos refere frei Bartolomé de Las Casas, o que provoca mais uma vez, a familiaridade com esta gentes e a esperança que elas depositavam em tal empresa. O cronista remata da seguinte forma o ambiente de festa que o envolveu: "le fué hecho mui buen recibimiento y mucha fiesta por ser alli muy conocido, que fué vecino de ella en algún tiempo"[7].


ROTA DE NAVEGANTES, AVENTUREIROS E EMIGRANTES

"Deus deu aos portugueses um berço estreito para nascer e um mundo inteiro para morrer" Pe António Vieira

Os Descobrimentos Portugueses do século XV foram o início a um novo processo de transmigração das populações europeias. Portugal, porque pioneiro neste processo, assume um lugar de destaque. À tradicional movimentação interna das populações, resultante da reconquista e ocupação do espaço, sucedem-se outros movimentos para fora do continente, de acordo com os descobrimentos e a necessidade de ocupação de novos espaços. De acordo com Camões os portugueses chegaram às sete partidas do mundo: "e se mais mundo houvera, lá chegara". Aliás, o poeta é, em certa medida, a materialização disso: em Ceuta e, depois, na Índia, em 1553, a sua vida é a expressão dos protagonistas dos descobrimentos: degradado, aventureiro, soldado e funcionário. Por tudo isto o vate estava devidamente informado para evocar a diáspora nacional em Os Lusíadas[8].

Estamos perante um movimento dinâmico. Os que partem cruzam-se com os que chegam. Os últimos tanto podem ser os escravos, resultantes das razias africanas ou presas da guerra marroquina, ou estrangeiros sedentos de notícias e de participar na aventura do descobrimento ou comércio. Esta é uma empresa nacional. Deste modo A.J.RUSSELL-WOOD[9] não hesita em afirmar que "The portuguese seaborne empire was characterized by a constant flux and reflux of people. Some were in the service of the crown, others servants of God, others servants of men, others captive of their own self-interest and cupidity, and still others who were essentially part of the flotsam and jetsam of empire. Some travelled voluntarily, whereas others were coerced or forcefully transported against their will.". Por aqui se vê quão variado foi o processo. Neste momento a nossa atenção está reservada ao período que decorre da conquista de Ceuta a meados do século dezasseis. Durante este intervalo de tempo definiu-se o espaço de ocupação portuguesa no novo mundo e os principais rumos das migrações, encaradas como movimento individual ou colectivo. De acordo com J. RUSSEL-WOOD[10] o primeiro foi evidente no Índico, enquanto o segundo está expresso no Atlântico. Tudo isto é resultado da política subjacente à ocupação dos mesmos espaços[11].

Já em 1534 Garcia de Resende testemunhara esta múltipla mobilidade da sociedade portuguesa. Aos primeiros refere:

"Vimos muito espalhar
portugueses no viver,
Brasil, ilhas povoar
e às Índias ia morar,
natureza lhes esquecer "


Aqui são evidentes duas formas de expressão dos fluxos migratórios: por um lado o espaço atlântico, onde o português tem que criar as condições para a sua instalação, isto é o "povoar", e, por outro, as Índias, aqui entendidas como o Oriente, onde se lhe depara uma sociedade estruturada e, por isso, o que deve fazer é integrar-se, no entender de Garcia de Resende "morar". É este segundo destino que atraiu maior número de migrantes, motivando uma completa sangria populacional, pois como refere, de novo, Garcia de Resende:

"ao cheiro desta canela
o reino se despovoa".


Tudo isto releva-nos duas atitudes distintas que resumem a forma de expressão de ambos os fluxos migratórios: dum lado é a plena ocupação dos espaços desertos ou ocupados, do outro a intervenção no comércio, por meio do estabelecimento de feitorias e fortalezas, instrumentos de controlo dos circuitos comerciais[12].

A isto sucede um fluxo inverso de escravos, que atemoriza os que ficam:

"Vemos no reino meter
tantos cativos, crescer,
e irem-se os naturais,
que se assim for, serão mais
eles que nós, a meu ver "


Destes últimos já muito se tem dito, mas dos primeiros pouco ou nada se sabe. Fala-se de uma verdadeira sangria populacional do reino mas quase ninguém questiona a dimensão assumida por este movimento: quantos partiram à aventura? Quem são estes aventureiros da conquista do Norte de África e Oriente, do descobrimento das ilhas, costa africana e Brasil? Por fim, importa saber porque se sai: vão todos de livre vontade, guiados pelo espírito de aventura ou por outros interesses e objectivos.

Aqui surge um pouco de tudo: viajantes, aventureiros, militares, funcionários e missionários. É uma gesta nacional pelo que estão representadas todas as localidades do reino. A saida faz-se de Lagos ou Lisboa mas as gentes que acodem às plagas lusitanas para a partida ou despida são de todo o país. Não são os algarvios os únicos a aderirem de alma e coração a este processo. O Norte e o interior também estão representados: marinheiros, lavradores, e oficiais mecânicos que aderem à aventura são de todo o país. A alguns as crónicas lavraram o nome em letras douradas. A maioria ficou incógnita e será difícil, senão impossível, reconstituir essa lista.

O tema não se esgota neste breve enunciado de nomes e números. Há que dedicar muito tempo à recolha de dados avulsos em documentos, crónicas e relações de viagens que testemunhem esta realidade. A literatura reserva um apartado para esta diáspora. Algumas das páginas de ouro da nossa escrita do século XVI são baseadas nessa vivência. A lista é extensa e contempla todas as áreas literárias: desde Gil Vicente, passando por Camões, Fernão Mendes Pinto é evidente tal premência das migrações geradas pelos descobrimentos[13].

Fernando Pessoa em o "mar português" dá-nos conta disso do seguinte modo:

"Ó mar salgado, quanto do teu sal
são lágrimas de Portugal!
por te cruzarmos, quantas mães choraram,
quantos filhos em vão rezaram!
quantas noivas ficaram por casar
para que fosses nosso, ó mar!"

A historiografia para além do tratamento diferenciado dos principais protagonistas dos descobrimentos, parece querer ignorar esta diáspora. Continua a insistir-se no estudo das personalidades: navegadores, ou funcionários. A compilação mais recente é de Luís de Albuquerque, que publicou em dois volumes a biografia de 31 aventureiros, viajantes e navegadores[14]. Ao mesmo nível temos o projecto de investigação dirigido por Kenneth Macpherson e Sanjai Subrahmanyan com o título "From Biography to History. Essays in the social History of portuguese in Asia.1500- 1800"[15]. Faltam estudos sobre as migrações provocadas pelos descobrimentos[16]. Tudo isto pela ausência de registos ou séries que o documentem. Todavia, a exemplo do que sucede para Espanha, é possível suprir esta falta com o recurso a outro tipo de fontes[17]. Há que decantar a documentação disponível e crónicas para chegar-se a aproximações quantificáveis deste movimento.


QUANTOS
Qualquer tentativa de quantificação dos fluxos migratórios na época pré estatística está condenada ao fracasso. Faltam registos de saída mas também os de entrada. Apenas é possível estabelecer uma ideia do volume assumido por estes[18]. Falta, ainda, contabilizar as campanhas a Marrocos no decurso dos séculos XV e XVI, as armadas que rumaram ao Oriente[19]. Compilados os dados da documentação oficial com aquela que surge nas diversas crónicas[20] é possível fazer uma ideia. Assim entende C.R. Boxer[21] que este fluxo migratório conduziu à saída do reino nos séculos XV e XVI de 1 milhão e cento e vinte e cinco mil almas. Magalhães Godinho[22] é mais moderado neste valor, referindo apenas a saída de 280.000 entre 1500 e 1580. Neste contexto são mais evidentes os dados dos fluxos com destino a Marrocos e Oriente.

As campanhas marroquinas iniciadas em 1415 continuaram até a década de vinte do século XVI, quando em 1524 ganhou forma a política de abandono das praças africanas. Destes que partiram, levados, muitas vezes, pelo espírito de cruzada para combater o infiel, alguns caíram no campo de batalha e dos outros, uns ficaram na guarnição de defesa das praças e outros regressaram ao reino com a esperança de um título ou da comutação da pena a que estavam sujeitos antes da partida. Em 1415 D. Pedro de Menezes ficou em Ceuta com 40 nobres e 2700 homens de armas. Noutras alturas tivemos frotas com o objectivo específico de construir um recinto fortificado. Assim sucedeu em 1489 para Graciosa, onde em duas frotas seguiram os operários especializados e os materiais necessários à construção. Já em 1482 havia sucedido o mesmo com a ida de 500 homens de armas e 100 artesãos para S. Jorge da Mina.

Quanto ao Oriente, após a primeira viagem de Vasco da Gama, tivemos outras quatro nos anos imediatos com o mesmo objectivo. Depois, traçado o rumo e os objectivos, sucederam-se as armadas para conquista do espaço ou domínio do comércio, atingindo a média de 10 por ano.

Daqui resultou uma activa mobilidade da população motivada pela atracção deste novo destino. No primeiro quartel do século XVI podemos referir apenas 2500 portugueses, mas na década de quarenta atinge-se os 6 a 7000. A este propósito refere Joel SERRÃO[23] que em 1527 saíam em média 2400 portugueses nas armadas com destino à Índia. Difícil, senão impossível será fazer uma ideia daqueles que partiram com destino às ilhas, ao Brasil ou Costa da Guiné. Nada nos permite antever uma possível quantificação das expedições de ocupação e das gentes que as integraram. Quantos acompanharam João Gonçalves Zarco na sua expedição de povoamento da Madeira? Quantos seguiram Martim Afonso de Sousa com destino ao Brasil? Estas são questões que dificilmente encontrarão resposta nos anais da História.


QUEM
A questão imediata à quantificação prende-se com a categoria sócio-profissional daqueles que foram lançados para a aventura do descobrimento e ocupação dos novos espaços. Militares, missionários e funcionários da coroa têm lugar cativo em todas as expedições. Aos primeiros foi, sem duvida, com destino ao Norte de África e à Índia que engrossou o seu número. Esta questão prende-se com outra que tem ocupado a Historiografia dos descobrimentos. Para o século XV estabelece-se uma dualidade de opções entre a burguesia e a aristocracia, expressa também no confronto de duas figuras: os infantes D. Pedro e D. Henrique[24]. Enquanto os primeiros estariam empenhados nas campanhas de defesa das praças africanas ou de conquista dos entrepostos orientais, os segundos postaram na linha da frente do descobrimento de novas terras, na senda de encontro de novos mercados e produtos. Dualidade de políticas, de rumos e protagonistas eis a forma simplista de definir este processo. A realidade não foi assim tão linear como se pode provar em qualquer listagem[25].

A preocupação da nobreza pelos descobrimentos é considerada posterior às campanhas marroquinas e à morte do Infante D. Henrique. Até 1460 a nobreza, excepção feita a Nuno de Góis e Cide de Sousa, estava empenhada na conquista e defesa das praças marroquinas. Para alguns, os descobrimentos até esta data foram protagonizados, maioritariamente, por aqueles que estavam próximos da sua Casa. O primeiro documento que testemunha esta mudança de atitude é a carta régia de 24 de Março de 1462[26] autorizando D. Duarte de Menezes a enviar embarcações à Terra Dos Negros. Todavia, tal como o refere Vitorino Magalhães Godinho[27], é difícil distinguir a burguesia da aristocracia, uma vez que somos confrontados com mercadores-cavaleiros e cavaleiros-mercadores, por isso, "no mundo que os portugueses vão creando nestes séculos o vector social dinâmico é o cavaleiro-mercador"[28]

Na Índia, segundo Luís F. Reis Thomaz e Genevieve Bouchon[29], a classe dirigente apresenta-se como um clã, composto por um grupo restrito da famílias, na sua maioria da velha nobreza anterior à crise de 1383-1385. Ainda, segundo os mesmos, há uma continuidade das famílias no processo de descobrimento e ocupação: "les fils se combattants à Ceuta em 1415 se battent à Tanger en 1437 ou à Alcacer-Ceguer en 1458, leurs petits-fils conquièrent Arzila en 1471 ou se battent à Toro en 1475, les fils de ceux-ci commencent à apparaitre en Indie"[30]. Esta ideia pode ser certificada com o testemunho de um dos descendentes do primeiro capitão do Funchal: João Gonçalves Zarco. Em 1526 João de Melo da Câmara, irmão do capitão da ilha de S. Miguel, justificava a sua capacidade de povoador do seguinte modo: "porque a ilha da Madeira meu bisavô a povoou, e meu avô a de São Miguel e meu tio a de São Tomé, e com muito trabalho, e todas do feito que se vê..."[31]. Estes dois mil colonos que ele se propunha levar para a colonização do Brasil não eram "da espécie de tomarem índias por concubinas e de viverem na terra sem a fazerem produzir". Não sabemos se, com tão valiosa tradição e intenção, conseguiu os seus intentos. Outra família é também protagonista de rumo idêntico. São os Betencourts, que da Normandia, através das Canárias, avançam a todo o espaço atlântico. São um exemplo de família atlântica[32].

No caso do Brasil o processo foi distinto. Entre 1532 e 1548 tivemos o sistema de capitanias. Os seus usufrutuários são capitães e altos funcionários a quem a coroa procura compensar os serviços prestados no Indico[33]. A mudança foi operada em 1549 por iniciativa de D. João III, que procurou a unidade política e administrativa do Brasil através da criação do cargo de governador-geral, entregue a Tomé de Sousa. É a política de povoamento dos demais espaços atlânticos, que levará a uma forte presença dos obreiros madeirenses para o lançamento da cultura da cana de açúcar[34].

Tal como o refere João Paulo COSTA[35] este permanente fluxo migratório é alargado a todos os estratos sócio-profissionais, com especial incidência para os "comerciantes, sacerdotes, marinheiros, guerreiros e missionários" que "trilharam juntos os mesmos caminhos, falaram às mesmas gentes, perscrutaram o mesmo horizonte infinito de água...". A bordo das embarcações iam os soldados para a peleja, os funcionários que defendem os interesses da coroa e os missionários como arautos da fé. Estes últimos, segundo José Pereira da Costa[36], são na maioria estrangeiros, "sob a égide da coroa portuguesa". É de salientar que eles são companheiros inseparáveis dos povoadores e conquistadores. Sucedeu assim na Madeira, em 1420, como para o Oriente no século XVI. Vasco da Gama em 1498 fez-se acompanhar apenas de dois religiosos, mas Pedro Álvares Cabral em 1502 levou 8 padres capelães, 1 vigário e um grupo de franciscanos sob as ordens de Frei Henrique Álvares[37]. A missão destes religiosos não se resumia apenas a assegurar a actividade de culto, a bordo e nos locais de fixação, à conversão dos gentios, pois podem ter também a missão específica de embaixadores. Depois foi a fixação com a criação de casas de franciscanos, dominicanos e, finalmente, jesuítas. Isto provocou a ida de muitos clérigos, oriundos do reino ou estrangeiro[38]. A estes juntam-se outros grupos de degredados ou aventureiros[39] e também os judeus, que fundiram a sua diáspora com a dos descobrimentos. O ano de 1497 marca o início dessa diáspora da comunidade judaica portuguesa, que fê-los chegara ao Norte de África, às ilhas, Costa da Guiné e Brasil[40]. Um dos factos mais significativos deste fluxo étnico sucedeu em S. Tomé com a ida em 1470 de 2000 crianças judias, arrancadas do seio da família para as terras inóspitas do Golfo da Guiné[41]. É de salientar que a presença da comunidade judaica nas terras da Costa da Guiné foi importante, tornando-se, por vezes, incómodos pela sua condição de lançados[42]. Tudo isto é revelador de algumas especificidades deste fluxo migratório provocado pelos descobrimentos. Às crianças judias enviadas para S. Tomé juntam-se as "órfãs del rei" no Oriente a partir de 1545. Estas foram recrutadas em Lisboa e Porto e conduzidas à Índia com a promessa de um dote e casamento[43].

A presença da mulher nas expedições rege-se por determinadas regras[44]. Aqui, ao contrário de Castela[45], a coroa portuguesa nunca promoveu a saída da mulher, pois toda a política foi, no início, de desencorajamento. Os descobrimentos parecem conjugar-se no masculino. Primeiro, ela só está presente nos casos de ocupação nas ilhas e Norte de África, sendo proibida, nos primeiros dez anos, a bordo das caravelas da Índia. Depois a necessidade de fixação no Indico mudou a política promovendo a coroa a migração do sexo feminino. É de salientar que, quer em Marrocos, quer no Oriente, algumas mulheres ficaram nos anais da História pelo empenho na defesa das praças ou guarnições em momentos de aflição.


FORMAS DE RECRUTAMENTO
Outra questão, de não menor importância, prende-se com a forma como se procedeu ao recrutamento. Há os que vão, de livre vontade, à aventura, os que cumprem uma missão como funcionários da coroa ou que se dispõem a qualquer serviço na mira de uma compensação[46]. A estes junta-se um grupo com grande destaque em todo o processo, os degredados ou prisioneiros. No momento de organização das armadas de defesa das praças marroquinas[47], de ocupação das ilhas ou do Oriente, a coroa permitia aos seus organizadores o recrutamento de homens entre os condenados em diversos delitos e os degredados.

A política moderna de degredo como forma de incentivo ao povoamento dos lugares ermos não era novidade, pois vinha sendo utilizada para o povoamento do litoral algarvio e zonas fronteiriças de Castela. A coroa, de acordo com o seu interesse, ordenava aos corregedores o destino a atribuir aos degredados. Depois do Algarve, tivemos Ceuta e demais praças marroquinas, as ilhas atlânticas. A sua presença em Marrocos é mais insistente a partir de 1431. Esta mudança é justificada por Zurara da seguinte forma: "muitos de meus naturaes que per alguuns negocios ssam desterrados de meus regnos, melhor estaram aqui fazendo serviço a Deos, conprindo sua justiça, que sse hirem pollas terras estranhas e desnaturarem-se pera todo o sempre de sua terra"[48]. Mais tarde, Luís Mendes de Vasconcelos[49] refere que "o Brasil povoou-se com degredados, gente que se tirava do reino por benefício dele". Neste caso recorde-se que Martim Afonso de Sousa fez-se acompanhar de 600 degredados. Não será isto um indício de que esta emigração funcionava como uma válvula de escape para os conflitos sociais[50]?.

Para as ilhas as orientações de envio dos degredados sucedem-se conforme a evolução do processo de povoamento do espaço atlântico: primeiro a Madeira, depois, os Açores, Cabo Verde e S. Tomé. Note-se que a partir de 1454[51] D. Afonso V determina, a pedido do Infante D. Henrique todos os homens condenados a degredo iam "povoarem as ditas ilhas que então começava de povoar...". No caso da Costa da Guiné -incluídos os arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé - temos para o período de 1463 a 1500 temos 19 casos em que foi solicitada a carta de perdão à coroa[52].

Ao Oriente também chegaram os degredados. O recrutamento da tripulação para as primeiras expedições, a partir da viagem de Vasco da Gama, fazia-se também entre os prisioneiros que aguardavam degredo nas terras do além. Vasco da Gama em 1497 fez-se acompanhar de dois - Fernão Veloso e Martim Afonso - lançados em busca de novas do sertão. Em 1500 Pedro Álvares Cabral fez-se acompanhar de dois - João Machado e Luís de Moura - que deixou em Melinde com intuito de ir ao encontro do Preste João. Um deles foi João Machado, natural de Braga[53]. Ele fora condenado ao degredo para S. Tomé, mas acabou por acompanhar Vasco da Gama, como língua. Ficou em Moçambique e lançou-se a uma vida de aventura por Quíloa, Mombaça, Melinde e Cambaio. Colocou-se ao serviço dos turcos e depois passou para o lado do portugueses, acabando por falecer em 1517 numa escaramuça contra o inimigo. Este não é caso único. Outros o sucederam como lançados no sertão, onde se perderam ou desertaram. O que mais se evidencia neste grupo é a grande capacidade de adaptação às adversidades da sua aventura, como o exemplifica João Machado.


DONDE
Este processo migratório é materializado por portugueses e também estrangeiros já residentes em Portugal ou que acudiram ao apelo dos descobrimentos. Não é possível saber qual a região do país que mais contribuiu para este movimento. A tradição, que filia os descobrimentos na região algarvia, vê nesta faixa litoral sul do país a incidência dos agricultores, marinheiros e mercadores. Esta dedução resulta do facto de as primeiras expedições terem partido de Lagos[54] e de nelas se comprometerem muitos da casa do Infante que aí viviam, oriundos de várias localidades do país[55] . É certa a participação dos algarvios[56], nomeadamente na primeira fase dos descobrimentos, conhecidos como henriquinos, mas este foi um processo que empenhou todo o país. Note-se que no caso da primeira expedição a Ceuta o infante D. Henrique percorreu o norte do país a recrutar as gentes para a armada. Note-se que no caso do Oriente foi precisamente na região entre o Sado e o Minho que Joaquim Veríssimo SERRÃO[57] encontrou maior número, que contrasta com o valor reduzido do Alentejo e Algarve. Igual é a situação a partir do século XVI, com a expansão no Indico, ainda, segundo o mesmo autor[58].

Outro factor importante é a presença de estrangeiros em todo este processo. Eles actuam como marinheiros, mercadores e povoadores. Alguns residiam já em Portugal e estavam naturalizados, outros afluem ao país pela nova dos descobrimentos. Aqui merecem especial destaque para os italianos, oriundos das diversas cidades-estados, e os flamengos. No primeiro caso é de salientar a presença genovesa que remonta ao tempo de D. Dinis[59]. Foi Manuel Pessanha encarregado pela coroa de organizar a armada que estará na origem dos descobrimentos. Aliás foram os genoveses, venezianos e florentinos quem mais usufruíram desta abertura da coroa à participação estrangeira nos descobrimentos. Estes, mediante solicitação da coroa, ou através da naturalização- por carta régia ou casamento-, integram-se nas viagens de descobrimento, povoamento e comércio[60].



Notas:
[1] Confronte-se João José Abreu de SOUSA, "Emigração madeirense nos séculos XV a XVII", in Atlântico, nª.1, Funchal, 1985, pp. 46-52.

[2]ADVANCE \u 3ADVANCE \d 3 José PEREZ VIDAL, «Aportación portuguesa a la población de Canarias. Datos», in Anuario de Estudios Atlânticos, nº 14, 1968; A. SARMENTO, «Madeira & Canárias», in Fasquias e Ripas da Madeira, Funchal, 1931, 13-14.

[3].Manuel Monteiro Velho ARRUDA(Colecção de documentos relativos ao descobrimento e povoamento dos Açores, Ponta Delgada, 1977) refere as cartas atribuídas a João Vogado(19 de Fevereiro de 1462), Gonçalo Fernandes(29 de Outubro de 1462), Rui Gonçalves da Camara (21 de Janeiro de 1473), Fernão Teles(28 de Junho de 1474 e 10 de Novembro de 1475), Fernão Dulmo e João Afonso do Estreito(24 de Julho e 4 de Agosto de 1486).

[4].Cristóbal Colón y el descubrimiento de América, 2 vols, Barcelona, 1945.

[5].História de Las ïndias, vol.I, México, 1986; Vida Del Almirante Don Cristóbal Colón, escrita por su hijo, México, 1984

[6].Esta situação foi já realçada por Henry HARRISSE, Cristophe Colomb devant l'histoire, Paris, 1892; Henry VIGNAUD, Histoire critique de la grande entreprise de Cristophe Colomb, 2 vols, Paris, 1911; Gaetano FERRO, As navegações portuguesas no Atlântico e no Indico, Lisboa, pp.181-183.

[7].Fray Bartolomé de LAS CASAS,História de las Indias, vol.I,México, 1986, 497.

[8] Veja-se Armando de Castro, Camões e a sociedade do seu tempo, Lisboa, 1980; IDEM, "Camões emigrante, poeta do drama da emigração", in Revista Camões, nº.2-3, 1980. Luís de ALBUQUERQUE, "Luís de Camões. O cantor de uma obra colectiva", in Navegadores viajantes e aventureiros portugueses. sécs.XV e XVI, vol. I, Lisboa, 1987, pp.143-156; Martim de ALBUQUERQUE, A expressão do poder em Luís de Camões, Lisboa, 1988.

[9] A World on the move. The portuguese in África, Asia, and América 1415-1808, London, 1992

[10]Ob.cit., pp.112-119.

[11] Ilídio do Amaral, "Medidas portuguesas para a organização dos novos territórios nas margens continentais do Atlântico Sul, no século XVI(apontamentos de Geografia e História)", in Revista da Universidade de Coimbra , vol. XXXVI, 1991, 277-316.

[12]. Confronte-se João Paulo COSTA, "A Colonização Portuguesa na Ásia", in Portugal no Mundo, vol. III, 158-179; Ilídio do AMARAL, "Medidas portuguesas para a organização dos novos territórios nas margens continentais do Atlântico sul, no século XVI(apontamentos de Geografia Histórica)", in Revista de Universidade de Coimbra, XXXVI, 1991, 277-316;

[13]. Confronte-se Hernani CIDADE, A Literatura Portuguesa e a Expansão Ultramarina, vol.I, Coimbra, 1963.

[14]Navegadores viajantes e aventureiros Portugueses sécs.XV e XVI, 2 vols, Lisboa, 1987

[15] Veja-se Mare Liberum, nº.5, Junho de 1993.

[16]. Os estudos de Joel SERRÃO( A emigração portuguesa, Lisboa, 1977; "Emigração", in Dicionário de História de Portugal, vol. II, Porto, 1981, 363-373) e Vitorino Magalhães GODINHO(Estrutura da antiga sociedade portuguesa, Lisboa, 1980;"Sociedade Portuguesa", inDicionário de História de Portugal, vol. IV; "L'emigration portugaise(XVe- XVIe siècles).Une constante structurale et les réponses aux changements du monde", in Revista de História Económica e Social , nº.1, 1978, 1-32).

[17]. Peter Boyd Bowman, Indice deobiográfico de cuarenta mil pobladores españoles de América en el siglo XVI, 2 vols., Bogotá, 1964, 1968. Magnus Morner, "Un informe del estado de la investigación sobre la emigración española a América anterior al año 1810", in Anuario de Estudios Americanos, XXXII, Sevilha, 1975. Veja-se a mais recente aportação de um seminário coordenado por António EIRAS ROEL(ed.), La emigración española a ultramar. 1492-1914, Madrid, 1991.

[18] Veja-se Vitorino Magalhães GODINHO, Mito e Mercadoria, utopia e prática de navegar. séculos XIII-XVIII, Lisboa, 1990, pp.364-365.

[19] O estudo mais recente António LOPES, Eduardo FRUTUOSO E Paulo GUINOTE, "O movimento da carreira da Índia nos séculos XVI-XVII. Revisão e propostas", in Mare Liberum, 4, 1992, 186-265. Com bibliografia actualizada.

[20] Por exemplo para o Oriente temos Fernão Lopes de CASTANHEDA, História do descobrimento e conquista da Índia pelos portugueses, livros I-II, Coimbra, 1924, livros III-IV, 1928, livros V-VI, 1929. Confronte-se Germana da Silva CORREIA, História da colonização portuguesa na Índia, 6 vols, Lisboa, 1948-56; Visconde LAGOA, Grandes e humildes na epopeia portuguesa do Oriente(séculos XV, XVI e XVII),2 vols, Lisboa, 1942-43. Ficou pelo antropónimo Albuquerque.

[21]O império colonial português, Lisboa, 1977.

[22] "Sociedade Portuguesa", in Dicionário de História de Portugal,

[23]A emigração portuguesa, Lisboa, 1977, 93.

[24] Confronte-se Armando de CASTRO, História Económica de Portugal, vol. III, Lisboa, 1985, 59 e segs.

[25]. Idbidem.

[26]. Monumenta Henricina, XIV, 208-210.

[27] "Sociedade Portuguesa", in Dicionário de História de Portugal, vol. IV.

[28] Vitorino Magalhães Godinho,"As ilhas atlânticas.Da geografia mitica à construção das economias oceânicas", in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1989, 47.

[29]. Voyage dans les Deltas du Gange et de l'Irraouaddy. 1521, Paris, 1988, pp.367-413.

[30].Ibidem, p.410.

[31]História da Colonização Portuguesa do Brasil, vol.III, 90.

[32] J. Moniz BETTENCOURT, Os Betttencourt. Das origens normandas à expansão atlântica, Lisboa, 1993.

[33] Veja-se História da Colonização Portuguesa do Brasil, vol.III, pp.160-258.

[34] Gilberto FREIRE, Aventura e Rotina, 2ª ed., s.d., 440-449; David F. GOUVEIA, "A manufactura açucareira madeirense 1420-1550", in Atlântico, nº.10, 1987, 115-131.

[35]. ""As missões cristãs em África", in Portugal no Mundo, vol. III, 1989, p.88.

[36] "Comunicação sobre a Relação da viagem que fizerão de Lisboa para Macao na galera Novo paquete 5 congregados de missão: Henriques e Almeida sacerdotes: cinco subdiaconos Amorim e Pinto menoristas em 1831", in Studia, nº.48, 1989, 369-444.

[37] Manuel dos Santos ALVES, "A cruz, os diamantes e os cavalos: Frei Luís do Salvador, primeiro missionário e embaixador", in Mare Liberum, nº.5, 1993, pp.9-20.

[38] Sobre esta temática confronte-se: António BRÁSIO, História e missiologia, Luanda, 1973; C. R. BOXER, A igreja e a expansão ibérica.1440-1770, Lisboa, 1975; Francisco Leite de FARIA, "Evangelização das terras descobertas no tempo de Bartolomeu Dias", in Congresso Internacional Bartolomeu Dias e a sua época.Actas, vol.V, Porto, 1989; João Paulo Oliveira e COSTA, "As missões cristãs em Africa", "As missões cristãs na China e no Japão",in Portugal no Mundo, vol.III, 1989, 88- 103, 143-157; Luís Filipe F. R. THOMAZ, "Descobrimentos e evangelização. Da cruzada à missão pacífica", in Congresso Internacional de História. Missionação Portuguesa e encontro de culturas.Actas, vol I, Lisboa, 1993, 81-129.

[39] Veja-se Luís de ALBUQUERQUE, Navegadores, viajantes e aventureiros portugueses. séculos XV e XVI, 2 vols, Lisboa, 1987

[40]. São muitos os estudos sobre os Judeus em Portugal, confronte-se a síntese actualizada de Maria José FERRO, Los judíos en Portugal, Madrid, 1992.

[41]. Samuel USQUE, Consolação às tribulações de Israel, Coimbra, 1906.

[42] Maria Emília Madeira SANTOS, "Origem e desenvolvimento da colonização. Os primeiros lançados na Costa da Guiné. Aventureiros e comerciantes", Portugal no Mundo, vol.II, pp.125-136.

[43]. Confronte-se C.R.BOXER, A mulher na expansão portuguesa ultramarina ibérica, Lisboa, 1977.

[44] Sobre a presença da mulher na expansão veja-se: Elaine Sanceau, Mulheres portuguesas no ultramar, Porto, 1979; C.R. Boxer, A mulher na expansão ultramarina ibérica, Lisboa, 1977; Maria Regina Tavares da Silva, Heroínas da Expansão e Descobrimentos, Lisboa, 1989.

[45] Veja-se Richart KONETZKE, "La imigración de mujeres españolas a América durante la época colonial", in Revista Internacional de Sociologia, nº.9-10, Madrid, 1945.

[46]. Veja-se no caso do Oriente o estudo de Luís de ALBUQUERQUE e José Pereira da COSTA, "Cartas de serviço da Índia(1500-1550)", in Mare Liberum, nº.1, 1990, 309-396.

[47]. Confronte-se Luís Miguel DUARTE e José Augusto P. de Sotto Mayor PIZARRO, "Os forçados das galés(os barcos de João da Silva e Gonçalo Falcão na conquista de Arzila em 1471)", in Congresso Internacional.Bartolomeu Dias e a sua época. Actas, vol. II, Porto, 1989, pp.313-328.

[48]. Citado por Pedro de AZEVEDO, Documentos das chancelarias reais anteriores a 1531 relativos a Marrocos, t.I, Lisboa, 1915, p.XIII.

[49]. "Diálogos do sítio de Lisboa", in Antologia dos Descobrimentos Portugueses(século XVII), Lisboa, 1974.

[50]. Veja-se o que aduz, ainda que para uma situação distinta, Manuel HERNANDEZ GONZALEZ, "La emigración a America como valvula de escape de las tensiones sociales en Canarias durante el siglo XVIII. Las actitudes sociales ante la delinduencia", in Antonio EIRAS ROEL(ed.), La emigración española a ultramara, 1492-1914, Madrid, 1991, pp.311-316.

[51] Carta régia de 18 de Maio, ANTT, Chanc. de D. Afonso V, lº.10, fl.44vº, publ. V.M. Godinho, Documentos sobre a expansão , t. I, pp.215-216.

[52] Veja-se Vitor RODRIGUES, "A guiné nas cartas de perdão(1463-1500)", in Congresso Internacional. Bartolomeu Dias e a sua Época. actas, vol IV, Porto, 1989, pp.397-412.

[53] Elaine SANCEAU, "O degredado João Machado", in Casos e Curiosidades, Porto, 1957, pp.181- 191; Maria Augusta Lima CRUZ, "As andanças de um degredado em terras perdidas -João Machado", in Mare Liberum, nº.5, 39-47.

[54]. Rui LOUREIRO, Lagos e os Descobrimentos até 1460, Lagos, 1989.

[55]. Confronte-se Joaquim Veríssimo SERRÃO, História de Portugal, vol. II, Lisboa, 1979, pp.135- 140.

[56]. Veja-se Rui LOUREIRO, Lagos e os descobrimentos até 1460, Lagos, 1989;Maria Benedita ARAUJO, "Algarvios em S. Tomé no início do século XVI", in Cadernos Históricos, IV, Lagos, 1993, 27-39.

[57]História de Portugal, vol. III, Lisboa, 1980, 164-169.

[58]. Ibidem, vol.III, Lisboa, 1980, pp.164-169.

[59] Confronte-se Morais do ROSÁRIO, Genoveses na História de Portugal, Lisboa, 1977; Virgínia RAU, Estudos sobre História Económica e social do antigo regime, Lisboa, 1984; IDEM, "Uma família de mercadores italianos em Portugal no século XV: os Lomellini", in Revista da Faculdade de Letras, Lisboa, 1956, XVI, nº2, 56-69.

[60]. Prospero PERAGALLO, Cenni in torno alla colonia italiana in Portogallo nei secoli XIV, XV e XVI, Torino, 1904; Charles VERLINDEN, "L'influenza italiana nela colonizzazione iberica.Uomini e metodi", in Nuova Rivista Storica, XXXVI, 1952, 254-270; Isabel Castro HENRIQUES, "Os italianos como revelador do projecto político português nas ilhas atlânticas(séculos XV e XVI)", in Ler História, nº.16, 1981.

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